quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Flor do Lácio


Nesta noite,
minha língua,
última flor do Lácio,
poderia morrer do discurso da tua pele.

domingo, 16 de dezembro de 2012

IV Carta de Iaponica insula rosarum

Recordei-me do velho Barão.
Seus olhos cansados, suas forças esgotadas, lutando com palavras contra um mundo de vazio e solidão.
Maya pediu-lhe um poema, Barão deu-lhe um mundo e isso não foi o bastante.
Do que vivo, a quem eu poderia dar poucas flores que eu colho todo dia e olho abismado com meu enigma pessoal: o que são?
Lembro-me da morte do pai do velho Barão.
Soubera há poucas horas da notícia e tínhamos nosso caminho, precisávamos continuar e estávamos ali.
Barão, sentado, em silêncio, segurava seu copo.
Fazia frio. Era inverno.
Sentado de frente a ele, eu olhava e segurava também o meu copo.
Havia entre nós e a vida a morte.
Havia a ausência de um pai.
Havia um homem que nascia em Barão.
Havia um coração que se tornaria um criador de mundos, que espalharia por todos os cantos pedaços de possibilidades de descanso para tanta solidão e cansaço.
Barão não disse nada.
Tampouco eu.
Sentíamos que era o momento de nosso maior silêncio.
Durante as tardes, quando caminho pelo lado esquerdo da costa desta ilha, penso nele.
Há flores, há essas frágeis rosas que nem rosas se parecem.
Penso em nós, em nossos medos do que viria pela frente.
Não éramos mais que estas flores. Não éramos mais que esses dias sem fim que se seguiram ao nosso silêncio.
Nasceríamos, viveríamos e um dia dois velhos companheiros teriam o nosso mesmo silêncio, dificilmente naquele mesmo lugar.
Penso em Barão, Davy, porque eu nunca soube também da substância que o mantinha vivo, até sentir que oferecer um mundo a Maya foi um engano.
Maya erigiu com ele todos os muros, todos os jardins, todas as batalhas, todas as vitórias daquelas terras sem fim.
Era dela, era de sua capacidade feminina fértil a criação.
Barão sempre foi um tradutor. O melhor daqueles mundos sem fim. Era essa a essência do velho Barão: criar o que se ouve no silêncio.
Vejo-me aqui, em uma ilha, no meio do mar, e penso: Barão não teria criado este mundo também.
Eu sei que o Sol nasce do lado direito desta ilha e corre por todos os seus mais desconhecidos mistérios. E tudo provém de um emaranhado sem fim de teias geográficas femininas do que gera, do que cria, do que produz.
Eu queria, como Barão, ser um tradutor.
Não o consegui. Minha tradução trai, é torta e canta em outro tom o que ouve.
Eis minha saudade da completude que me oferecia Barão.
Davy, caso você o encontre um dia, diga-lhe isto: hoje eu sei da canção do silêncio, meu velho Barão. Hoje eu sei permanecer em silêncio.
Tenho também um mundo, tenho também a minha vez e minha voz: erige-se um homem pela beleza de uma mulher.

III Carta de Iaponica insula rosarum

Tenho febre.
Escrevo-te acometido de algum mal.
Algumas feridas que restavam do naufrágio parecem não formar cicatrizes.
São estranhos rasgos sobre minha pele que recordam à minha carne a todo momento que há sal, que há sol, que há dias não converso com você e esqueço-me das palavras dos homens.
Não desejo esquecer-me de mim.
Não desejo me perder do pouco que me resta sob estas roupas que em nada mais se parecem com roupas, sob esta pele que em nada mais se parece com quem fui.

[...]

Insistentemente a noiva do mar permanece em pé, de costas para mim, em silêncio, olhando para o horizonte enganoso que se vê em um mundo curioso e redondo.
Ela aguarda.
Ela o aguarda.
O encontro acontecerá inevitavelmente.
No espaço de poucos passos, separam-se universos que se complementam de forma perfeita.
Algo em seus ombros não permitem uma fuga em alta velocidade.
Ela precisa esperar.
Pacientemente como quem domina o ir e vir, ela aguarda para sempre, ali, casar-se com o mar.

[...]

Foi um sonho estranho, Davy.
Tenho tido sonhos estranhos alguns dias.
Eu a via, o mar a via, e das coisas que conseguia ouvir nada soava melhor que o bater das ondas nas pedras à sua esquerda e o vento desmanchar seus cabelos feitos de sal.
Ela, toda ela, feita de sal.

II Carta de Iaponica insula rosarum

Davy, há três semanas decidi começar a escrever, porém condições adversas me impedem.
Tenho todo o tempo do mundo, tenho conseguido alimento de forma relativamente fácil e as condições do clima não condizem com o que sempre vivi em territórios orientais.
Isso poderia me aliviar, mas causa-me dúvidas.
Não consigo ainda lidar bem com o que desconheço sobre onde estou.
Meus papéis, minhas rotas, minhas pastas, meus cargos, minhas coordenadas, todos não fazem juntos mais sentido para mim do que uma pedra rolar por cima de outra pedra quando chove. Simplesmente eram algo que aconteciam em um lugar e hora que, de outro modo, explicação alguma teriam para sua existência.
É um dia estranho.
Por isso anoto: viver sem derrota é, para quem navegou demais, recomeçar. Talvez seja continuar.
O quê?

I Carta de Iaponica insula rosarum


Davy, escrevo-te duvidando da sua acolhida e estas palavras.
Não sei como chegarão a seu destino, embora reste-me para manter a sanidade escrevê-las todas as noites enquanto eu estiver à espera ou em um curso que ainda desconheço.
Era a manhã de uma quarta-feira em que cumpríamos nossa derrota diária, quando as fúrias revoltaram-se contra nós.
Homens, ratos, todos agarrados ao que encontrassem de seguro antes de serem lançados ao mar.
Chovia.
Enrolado a uma corda por um descuido, perdi a mobilidade de meus braços e fui arrancado do esteio em que me agarrava com os olhos fechados, dado ao destino sem outra expectativa que não morrer.
Era novembro e corríamos o mar em direção às famosas ilhas encantadas de Yakushima e era certa nossa chegada ao alvorecer do sábado.
Não sei o que é dos homens neste momento. Sei que trago comigo minhas roupas, minha bolsa de couro com meus diários e a sensação estranha de não ter fraturas pelo corpo com tanta violência do naufrágio, senão vergões que pelo seu ardor acordaram-me em um remanso neste lugar. Restos da embarcação chegam diariamente à costa desta ilha. Do que pude resgatar, o que mais tem-me valido é um abrigo que me tem ajudado a manter o calor nas noites absurdamente frias deste lugar.
Há aproximadamente dois meses, minha vida tem sido caminhar por estas paragens, reconhecer o que me cerca e buscar sentido para o esvair de minha vida em um lugar como este.
Nada é certo.
Das muitas coisas que me intrigam neste lugar, e das quais com o tempo narrarei em detalhes a você, é a sensação de que aqui há algo que não me permite discernir a substância das coisas.
Explico-me: as cores.
Há belas árvores por aqui às quais chamei rosas japonesas. Uma breve apreciação de sua beleza tira-me o sono por dias. Há algo que não me deixa apropriar do que realmente são. As cores, as folhas, a terra, o ar, a luz. As cores dissolvem-se em tantas possibilidades que não me é permitido seguir a lógica de que vejo o que há nelas, ou de que elas estão sobre uma ilha e por isso são belas.
Não.
Há algo inconstante nas certezas. Há algo que tira-me dos dias seguidos de derrota correta, planejada, sobre o mar.
Sei que estou no meio do mar, mas estou em terra, mas é terra dentro do mar e não sei realmente se a terra o é para mim por conta do mar, ou se o mar o é para mim por conta da terra.
Piso?
Não sei.
Tenho passado dias acordado e agora os ventos começam.
Eis, Davy, meu clamor: onde quer que você esteja, tento montar em minha cabeça suas indicações de que caminhos percorrer.
É às vezes triste não poder contar contigo aqui, mas às vezes parece promissor.
Eu poderia, em situações melhores, dizer que pisei a terra da esperança.
Há flores, flores belas, que florescem e morrem com uma rapidez sem precedentes, mas que levam com cada renascer ao mais profundo da minha alma uma luz que me tem mantido em pé por longos dias.
Espero ver-te em breve, amigo.
Espero ver-me em breve.