terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A pérola

Teus seios suavemente repousam sob as conchas calcificadas de minhas [mãos
Insuspeitados grãos que violaram o íntimo de meu interior...

Caminho calmo pelas vagas de tua nuca enquanto tentas adormecer,
mas aquece-te meu áspero e invasivo calor
E eis que te vejo, ainda noite: furiosa, amanheceres
Como se a fina membrana entre a vida e o sonho libertasse o que em ti [resiste: à vida, à dor, à solidão, à mulher ferida, à ausência em dias frios...

Calada, vejo-te em pavor envolver meu corpo de batalha já vencida com a [madrepérola que escorre de teu ventre...
Brilho de estranha substância que, assim, reavivas...
Extática e total te contorces e, enfim, tombas à deriva...

Suave, adormeces, mulher...

Tuas costas novamente são minhas,
Teus seios novamente são meus,
Tua nuca, novamente, meus sete mares...
Vagas, vagas, vagas... nua, vagas no fundo do mar...

Em teu sonho, em vão, buscarás minha morte,
Em desespero, porém, chamarás das profundezas de teu ímpeto:
o meu nome, o meu grão em teu ser, o meu ser em teu grão… repletos de [unidade.

Eis como a pérola, enfim, nasce.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Sem título

Inscrições tardias tem meu coração
Campa fria como não a conheceste
Onde uma antiga civilização
Fez império e ascendeu somente

Foi de vasto fulgor o seu presente
Não mais que simples ilusão, somente
Onde os mais estariam quando a ausência
Fosse o golpe fatal na inocência?

Sem título

Como se tivesse muitos anos pela frente,
respiro, pois é carnaval.

Um frio imenso sem cessar
cortou meus cabelos, trouxe mensagens de longe…

Do lado de lá do rio alguém me espera.

É final de março.
É mês de ver a chuva ir embora.

Há anos não a conheço.
Há anos não sei o seu nome, seu endereço,
sua carteira de identidade.

Meus filhos não sei que rosto têm, nem sei quais suas dores.
Quem acordará de madrugada quando eu não estiver lá para atendê-los?
Onde estarei em noites de frio em que a solidão vier visitá-la?

Liberdade.

Sonho.

Agora.
Quando a chuva cai nesses finais de tardes quentes
Lembro de qualquer coisa em você que me sequestrou
Anos atrás, dancei contigo na chuva e na distância,
Hoje, danço junto à janela, em silêncio, sem movimento

Hoje danço só.

Meu par.

Um par.

Sem título

Sem receios o homem que se quer de aço rompe
o mar
inonicamente aberto com suas vagas
corta
o peito nu
em fria manhã de vento frio
e longo estio corre o continente buscando encontrar
o mar
o homem
o que não está lá.

Sem título

Quanto tempo se desfez
entre você, o mar e mim
meteoros ao cair da noite
na grande cidade
São seus sóis, todos sós
enfim sem fim

Sem título

Por que sozinho encontro-me com você?
Em que caminho, em que desespero,
em que mundo perdi o contorno de sua face?

Seus olhos nascem toda manhã, todo santo dia de ser santo
Seus olhos nascem

Sóis

Nascem

Sós

Sem título

Apenas que do corpo não se dissipe
A vaga penumbra do sonho antigo
O resquício virginal do amor primeiro
A ilusão qu’inda hoje em mim existe

Que não cantem-me vitórias sem ousar
Enfrentar a perda que ganhamos
Contra o peito a brisa arde
Dor inata do desejo e da ternura

E a distância que me nega seu consolo
Anuncia que de novo chega o dia
E que mesmo aberta a casa está vazia

Só não deixe, Mar do Mundo, que se vá
A penumbra que cobre o sonho triste
Esta única ilusão que me restou

Posfácio à Marina

Quem voa sozinho não quer voar
Somente na noite e só
À espera de um porto
Onde se esconde a saudade do mar

Saudade ultramarina
Já longe... tão distante de Marina
E seu prólogo que me ecoa
Nos recônditos da alma menina

“Os poetas se enganam”,
Marina,
Antes de tudo e depois,
Marina,
“Se enganam”

Voar e voar e ser feliz
Sozinho

Marina, acorde do teu sono infindo
Quem voa sozinho, Marina
Marina, marina, marina
Só quer amar... O mar, Marina...
Não quer voar

Dois olhos: bolhas de água

Desde pequenina. Sabia-se não. Sabia desde quando não. Olhinhos medrosos, escuridão tremenda.. vergalhões vermelhos subindo indo no negrume da noite junina, da festa junina, da fogueira junina do sangue junino de céu de estrelas... frio... frio... e o vergalho quente.

Suas pernas tremelicando riam-se no fundo a não mais saber onde terminava o medo e começava a fascinação.

Foi João. Foi não. Ou foi Zezinho, menino brincalhão...

Primeiro beijo. Um roubo. Arroubo, primeiro coração.

A fogueira a queimar ensandecida já no final da noite. As famílias a se recolher e ela ali, assistindo a tudo na última vez que se lembraria do fogo.
Tão fria a noite, tão quente a fogueira, tão grande o mundo, tão curta a vida.

Sobre cigarros, álcool e rock and roll

“War, children, it’s just a shot away
I tell you love, sister, it’s just a kiss away.”
(The Rolling Stones)
Três tiros no peito. Causa mortis de um jovem estirado no chão de um sábado à noite na Alameda Santos.

Vingança. Crimes passionais. Jonas, Elias, Carlos, Paulo e André seguiriam seu roteiro. O Trianon estava a apenas alguns passos. Alameda Santos. “Estranha nostalgia”, pensava Carlos consigo e com as lembranças mais que recentes que seus vinte e dois anos lhe permitiam ter. Como poderiam as coisas serem assim? Morrer em plena Alameda Santos com três tiros no peito, por amor?... Não, em silêncio percebia: começara a romantizar. Viu uma amoreira. Deveria ser seu pai.
Sim, a voz de seu pai, homem do interior, sabedor das árvores e das coisas da terra, tentara a vida em São Paulo e se mandara ao fim da vida tentada com a mesma busca: tentar a vida em outro lugar. Carlos, tentar a vida em São Paulo. Foi esse o relampejo em sua mente acompanhado de um trago forte daquele cigarro e um gole mais que ardente de um destilado qualquer (na garrafa, mais barato, pego na gôndola há poucos minutos).
Sentados ao beiral do mirante do MASP, conversando, rindo, vivendo, juvenescendo. Carlos testava em silêncio seus limites. Seus pés estavam livres, suspensos em pleno abismo. O que faltaria? A violência das guitarras em alucinação de distorções soando em seus ouvidos, a bateria furiosa a excitar os seus pulmões em espasmos diafragmáticos e fazendo seus olhos arderem em febre, a revolução incontida em cada grito rascante em microfones pobres, em músicas pobres em desespero sem igual: o vôo final... O vôo final?
Sua avó. Dois comprimidos de Diazepam pra dormir. Centenas de pessoas a ir, a vir pela Avenida, veias abertas das cidades do país. A angústia calada pelo horizonte, universo frio e iluminado por baixo por infindas estrelas elétricas. Seus pés de volta ao beiral, alojados em segurança nos blocos coloridos pelo musgo das jardineiras. O MASP parece que vai rachar ao meio. Um olhar que se perde. Outro trago. Setenta e outros anos. Contara-lhe as mais belas histórias, sua avó. Agora belas, as histórias, por serem contadas por sua avó, não mais por suas personagens, babacas que gritavam para rochas se abrirem ou crianças mal-educadas que temiam o Diabo. O Diabo são três balas no peito na Alameda Santos.
“— Vai com Deus, fio. Tá levando a blusa?” Riu pra chorar. Despediu-se dos amigos. Guardou com cuidado os outros três cigarros em seu bolso para não esmagarem na viagem do ônibus até sua casa, na periferia da grande cidade. Daria-os para sua avó que fumava há mais motivos que ele. Tudo agora se iniciava. Novamente. O álcool desvendava seus últimos mistérios em lágrimas.