sábado, 21 de janeiro de 2012

Sonho intranquilo

Acordara de um sonho intranquilo.

Naquele súbito perceber-se, olhou pela janela.

Desvairadamente, helicópteros caíam sobre os prédios, maiores objetos vindos do céu, envoltos em fogo e luz, explodiam sobre as construções e, ao longe, as buzinas estridentes zuniam em uma sinfonia desafinada em que alarmes, sirenes, pneus, ossos, vidros, tudo, tudo soava.

Cada vez mais, a destruição se aproximava. Foi quando percebeu que tinha de salvar. Havia ali a necessidade de amados seus, todos próximos, à espera de cuidados, fossem quais fossem. Olhou para suas irmãs, mas elas, acordadas e cientes do caos, já desciam as escadas, gritando, carregando alguns pertences que não soube distinguir. Pertences! Pensou consigo e pensou não ser capaz de levar tudo. Afinal, do que precisaria, seus livros, seus medicamentos, sua garrafa d'água, seu  velho violão, seus vasos de flores, seus contados três pares de sapatos...

Identidade.

Seus documentos de identidade! Como lidar com o mundo de explosões que via se formar sem seus documentos, sem atestados carimbados de onde viera, de quem viera, com quem seguia, para onde seguia. De repente, deu-se conta: extática, como quem vê o tempo dobrar sua rota e alcançar sua própria cauda, sua avó, deitada no sofá da sala, olhando pela grande janela de vidro do terceiro andar e deixando dentro de si alguma coisa sentir e fazer sentido dentro de tudo o que vivera e de repente se esvaía em fogo, aço e dor.

A vida indo-se embora.

Naquele momento, olhou para sua mãe que ainda separava algo para levar, talvez comida, talvez roupas... nenhum anel. Tomou sua avó nos braços, orientou a mãe que descesse rápido e se juntasse às meninas que iam à frente e acalmou-a dizendo: tudo vai ficar bem.

Sentiu, naquela hora, ao ficar exatamente no meio da porta, que algo ficava, que tudo o que imaginara até então servira para, no fim, não saber o que levar, não saber o que deixar, mas saber da necessidade de continuar. Respirou e naquele ar, o último de sua morada, trouxe consigo as fotografias guardadas embaixo da cama. Todas elas. Aquelas que sua mãe mostrara a todas as suas namoradas, aquelas que a fazia chorar lembrando dos dias que não foram tão felizes quanto aqueles momentos precisavam que eles tivessem sido… Todas as suas pequenas lebranças, seus pequenos apegos, os sons do violão antigo do pai que por muito tempo calara-se, todos os sorrisos em festas de finais de ano passadas ali, apertadas nos pequenos cômodos daquele apartamento tão periférico da cidade grande, das grandes riquezas, do grande luxo, das vezes que, sozinho, pensou em desistir, das vezes em que sozinho pensou ser tudo o que quis, do primeiro amor, da primeira vez, dos primeiros surtos, dos primeiros medos e quando por último deu por si, lá de fora, em algum lugar, talvez, todos os outros também estariam indo embora. Todos aqueles do dia a dia. O moço da portaria, o moço do ônibus, o moço do posto de gasolina, seu professor preferido, seus grandes amigos, seus grandes amores, seus grandes companheiros de uma vida assim interrompida pela estupidez do acaso.

O primeiro passo foi o mais difícil.

Tomado por uma comoção profunda, soube: nada mais.

Uma lágrima correu em seu rosto enquanto caminhava vigorosamente em direção ao desconhecido.

Acordou de um sonho intranquilo.